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A crise da água no DF e entorno

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30/10/2017

Vivemos uma época de grande crise civilizatória, onde a humanidade ainda não conseguiu, em seu conjunto, superar um modelo econômico que coloca o lucro acima da vida, gera profundas desigualdades e uma destruição sem precedentes do meio ambiente, colocando em risco a própria existência de vida na Terra. Os efeitos da ação humana no planeta em todas as suas vertentes, sendo a principal o aquecimento global, já são considerados pelos cientistas como uma mudança de era geológica: por conta de nossas ações desde a primeira Revolução Industrial, levamos o planeta Terra ao período denominado “Antropoceno”, onde a instabilidade dos ecossistemas, a escassez e o desastre ambiental planetário tornam-se desafios chave cotidianos para a manutenção da vida.

Neste contexto, a crise planetária da água é objeto de grande destaque. A desestabilização dos ciclos hidrológicos, a poluição e a apropriação privada por grandes corporações negam a uma enorme parcela da população o acesso à água potável e saneamento, ao mesmo tempo que a falta de um controle social impede que seja construída uma alternativa que realmente consolide a água como um bem comum de direito dos povos e da natureza. Além da ganância insaciável das grandes corporações do setor, o imperialismo busca consolidar sua hegemonia se apossando de grandes reservas de água ao redor do mundo e derrubando todas as barreiras sociais e de soberania nacional que encontram em seu caminho. É esperado que a água seja uma das principais fontes de conflitos no planeta ao longo deste século.

O Brasil é o alvo da vez

Se a água ganha centralidade na geopolítica mundial, o Brasil torna-se ainda mais estratégico para o capitalismo. O país que detém a maior reserva de biodiversidade do planeta, que assumiu ao longo da história um papel na divisão internacional do trabalho de exportador primário de commodities e vive um momento de agressiva retirada de direitos da população e espoliação da natureza, tornou-se um dos grandes centros deste conflito civilizatório. Todos os dias, o governo ilegítimo de Michel Temer, o presidente mais impopular no mundo e na história do país, faz negociatas com a bancada ruralista e outros setores para sua manutenção no cargo, rifando direitos socioambientais e privatizando nossos biomas, consolidando a destruição do meio-ambiente pelo agronegócio, a mineração e a especulação imobiliária nas cidades e colocando nosso país à beira do colapso social e ambiental.

Falar de Brasil com relação a água não é qualquer coisa. Há muitos anos a comunidade internacional reconhece o Brasil como a maior reserva de água do mundo. O Aquífero Guarani, que possui uma área superior a 40 mil quilômetros cúbicos, era o maior reservatório de água potável conhecido até então. No entanto, recentemente descobriu-se que o aquífero antigamente chamado de Alter-do-Chão é muito maior que se imaginava, possuindo mais de quatro vezes a extensão do Guarani e abrangendo uma grande área, agora chamada de SAGA (Sistema Aquífero da Grande Amazônia), ultrapassando os 160 mil quilômetros cúbicos de extensão. Estima-se que o Brasil possua, sozinho, quase um quinto das reservas de água doce do mundo, portanto, este debate é de suma importância para nosso país.

O risco que corremos por conta de nossa política de destruição ambiental, e a importância e urgência da preservação e regeneração de nossos biomas diz respeito não apenas ao Brasil, mas sim a todo o continente e ao mundo. A evapotranspiração (que é a produção de umidade na atmosfera a partir das folhas das árvores) da Amazônia é responsável pelas chuvas que alcançam todo o Brasil e a América do Sul, e a destruição da floresta causa uma grande diminuição nestas chuvas (algo que experimentamos em praticamente todo o país nesse momento). Esse processo de transposição continental de umidade (chamado de “rios voadores”, conforme vídeo) está gravemente prejudicado pelo avanço do agronegócio sobre a Amazônia, e sua devastação pode gerar danos irreversíveis a todo o continente, provocando falta de água, desertificação e uma multidão de refugiados climáticos sem precedentes na história.

O Cerrado no olho do furacão

A devastação criminosa do Cerrado (que é o bioma mais atacado em todo o país e enfrenta um desmatamento em ritmo duas vezes maior que o da Amazônia) prejudica as nascentes de nossas principais bacias hidrográficas. Não se trata apenas de incêndios criminosos, como o provocado por grandes latifundiários na Chapada dos Veadeiros nesse momento (e já consumiu mais de um terço da área total do parque), mas também de desmatamento para pecuária de exportação, para plantio de soja (que se tornará ração para gado em confinamento na Europa e China), para a monocultura de eucalipto, pínus (e outras plantas que em escala de monocultivo causam o efeito apelidado de “deserto verde”), empobrecendo o solo e prejudicando sua capacidade de recarga hídrica para abastecer os lençóis freáticos e os aquíferos. Alguns especialistas já tratam a destruição do cerrado, a savana de maior biodiversidade no planeta, como irreversível e que trará consequências catastróficas para a população desse bioma que corresponde a quase um quinto da área total de nosso país.

Por toda a questão estratégica do Brasil no debate da água, e a grande janela de oportunidade ao empresariado que representa o governo ilegítimo de Michel Temer e sua “Ponte para o Futuro” (agenda programática de liberalismo econômico, conservadorismo moral e corrupção generalizada para afundar de vez o Brasil numa crise de longa duração), as grandes corporações transnacionais e as potências imperialistas escolheram nosso país como a bola da vez na agenda de saque e pilhagem. Em março de 2018 o Brasil foi escolhido para sediar o 8º Fórum Mundial da Água, que acontece a cada três anos organizado por um conselho criado pelas grandes corporações e governos que pensam a água como uma commodity e que deve ser privatizada para obter lucro. Esta feira de negócios disfarçada de fórum cidadão, que acontecerá em Brasília, encontra desde já grande resistência por parte de movimentos sociais, povos tradicionais e população civil no geral, que tem realizado assembleias populares para discutir o tema e preparam para a mesma data o Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) para resistir à agenda privatista da água e defendâ-la como bem comum dos povos e da natureza.

A população do Distrito Federal e seu entorno sofre com os erros de seus governantes do passado e do presente

Desde as primeiras missões que demarcaram a localização de Brasília e do Distrito Federal, o objetivo era trazer a capital do país para um local onde sempre houvesse água em abundância e de alta qualidade, evitando os riscos de poluição e contaminação de águas advindas de outros locais. Por esse motivo, Brasília foi colocada no local que é, de fato, a caixa d´água do país. Daqui saem águas que abastecem as bacias da Amazônia, Tocantins-Araguaia e Platina (que chega até os países do cone sul) e, portanto, havia a expectativa de que nunca faltasse água à população que residisse na capital federal. Mas o que aconteceu de tão errado que hoje a população sofre as mazelas da falta de água?

O Governo do Distrito Federal possui um histórico de grande descaso com relação à questão da água e meio-ambiente em suas mais variadas frentes. Sua política territorial, fundada com base na especulação imobiliária para grandes construtoras e empresários, a grilagem urbana e rural perpetrada por políticos tradicionais, além da gentrificação e a expulsão da população pobre cada vez mais para a periferia sem nenhuma estrutura ou planejamento, causou graves danos às nascentes, rios e reservatórios de água da região. Bairros que estão entre os mais densamente povoados do Brasil, como Águas Claras, Sol Nascente, Riacho Fundo, ostentam hoje apenas no nome um passado que era de grande abundância de água e de natureza nativa. Soma-se isso à falta de educação ambiental, uma trágica gestão antipopular dos recursos hídricos e da CAESB (que trabalha com a mentalidade de empresa que visa apenas o lucro), o gravíssimo problema do agronegócio (maior consumidor e poluidor de água em todo o país) e das indústrias ligadas a um modelo de desenvolvimento predatório e destruidor e, pronto: temos a receita perfeita para o caos e a crise da água no DF e Entorno que vivenciamos hoje.

Os reflexos da política de especulação imobiliária e grilagem aparecem também nas escolhas que ao longo das três últimas décadas os governantes do DF fazem a respeito da captação de água. Joaquim Roriz anunciou Corumbá IV como a “solução para abastecimento de água no DF” para lucrar com a especulação, ao mesmo tempo que protegia e incentivava a grilagem de outras importantes áreas de nascentes e mananciais. Os governos seguintes não foram diferentes: priorizaram a captação de água em grandes reservatórios (Descoberto, Santa Maria/Torto) e abriram mão da captação em mananciais de menor porte (pois isso implicaria em preservá-los). Regiões importantes de recarga hídrica e nascentes, como o Setor Noroeste, foram devastadas para dar lugar a bairros de alta renda e, no caso específico do Noroeste, sem ter alcançado sequer metade da ocupação de seus imóveis (e tendo direcionado toda a receita gerada para a construção do superfaturado elefante branco da Copa da FIFA, o estádio Mané Garrincha). É importante ressaltar que todo esse avanço sobre a natureza cresceu vertiginosamente a partir da aprovação do Plano Diretor de Ordenamento Territorial, cujos votos favoráveis foram comprados por Arruda e PaulOOctávio pelo valor de 420 mil reais por deputado (posteriormente revelado na Operação Caixa de Pandora).

O governo, diante de sua incapacidade de assumir seus próprios erros e promover a educação ambiental, culpa a população pelo consumo elevado. No entanto, o que o governador Rodrigo Rollemberg esquece é que quase 30% da água captada pela CAESB dos mananciais da região é desperdiçada por problemas técnico-estruturais na captação e distribuição. Além disso, ignoram que o agronegócio consome mais da metade da água distribuída no país e, embora no DF essa cifra seja um pouco menor, este setor ainda é o maior responsável pelo desperdício de água, contaminação do solo e das bacias e destruição dos biomas. O consumo doméstico, que precisa mesmo diminuir através de campanhas e apoio do governo, é uma pequena parcela do problema mas, diante da falta de vontade do governo em enfrentar latifundiários, grileiros, especuladores imobiliários e criar uma política de gestão de recursos hídricos eficaz, é contra o povo que o governo aponta seus dedos para culpar pela crise.

O consumo no Distrito Federal segue padrões nacionais: os ricos consomem muito mais, recebem água com mais regularidade e pagam proporcionalmente menos pela água consumida. Um morador do Lago Sul, por exemplo, consome em média diária por habitante 380 litros de água, enquanto um morador da Ceilândia consome 140 litros. E, embora a “versão oficial de racionamento” se diga igualitária entre as regiões, na prática vemos que concretamente nunca falta água no Lago Sul e Plano Piloto enquanto na periferia existem cidades que ficam quase uma semana inteira sem água (Planaltina e Sobradinho chegaram a ficar 10 dias de torneiras fechadas recentemente). Essa injustiça aumenta ainda mais quando percebemos que, proporcionalmente, a população pobre compromete muito mais de sua renda com água que os setores privilegiados.

A injustiça na distribuição é agravada pela grande desigualdade social no Brasil. Embora sejamos a nona maior economia do mundo, ainda estamos também entre os dez países mais desiguais do planeta, e o Distrito Federal é um dos locais mais desiguais do país. Isso aumenta ainda mais a covardia de um racionamento prolongado para uma população que não possui caixa d´água ou formas de armazenamento saudável. A intermitência no sistema hidráulico não apenas faz a população pagar por ar que passa pelo relógio medidor de consumo, mas também suja todo o sistema e traz surtos de diarreia, como o que vemos recentemente em Paranoá e Itapuã. Apesar da gravidade da situação, a CAESB, que é uma empresa pública mas que tem várias de suas ações realizadas em parceria com o setor privado, e atua no geral com interesses privados, nada faz para solucionar as injustiças sociais e instaurar um método progressivo de pagamento pela água que não penalize os mais pobres.

O governo insistiu por muitos meses no discurso de que a culpa era da população, que não escovava os dentes com um copo de água. E, enquanto a população ia cada vez mais se conscientizando e economizando, a crise só se agravava. Após perceber que culpar o povo não estava funcionando, o governo começou a adotar outra estratégia: a de culpar “agricultores” pela captação ilegal. De fato, a captação através de poços profundos com ou sem outorga se tornam um problema a partir de uma política ruim de gestão de recursos hídricos. No entanto, o governo age de forma calculada ao igualar grandes latifundiários e agricultores familiares no termo “agricultores”, como se fossem algo semelhante.

Os detentores de terras do agronegócio que trabalham com a pecuária ou a monocultura consomem uma quantidade enorme de água, empobrecem o solo, contaminam lençóis e rios com agrotóxicos e, ao fim e ao cabo, encontram toda a leniência do governo para perdoar suas dívidas e emprestar milhões através do BNDES. A destruição causada pelo agronegócio brasileiro é tamanha que, se esse setor fosse um país próprio, ele sozinho seria o oitavo país mais poluidor e o maior desmatador do mundo! Já os agricultores familiares, principalmente os que já possuem conhecimento de agricultura sintrópica, fazem justamente o oposto: recuperam os biomas, aumentam a capacidade de recarga hídrica do solo, retém umidade, plantam alimentos livres de veneno para a população e, com o tempo, fazem reaparecer nascentes (por isso se diz que uma agrofloresta é, também uma “plantação de água”). Mesmo compreendendo essa diferença, com o histórico de subserviência ao ricos e intolerância com os pobres, não é difícil imaginar qual classe social foi o alvo das fiscalizações do governo para procurar captações ilegais de água ou para derrubadas alegando motivos ambientais.

Considerando todos estes elementos, a conclusão que chegamos é que, de fato, vivemos um momento de crise da água. Mas a culpa não é da água, das chuvas ou do povo, e sim de uma trágica gestão dos recursos hídricos, de uma política territorial urbana e rural que coloca o lucro acima da vida, da especulação imobiliária, da grilagem, do agronegócio, das indústrias predatórias, da destruição dos biomas, da falta de educação ambiental e de uma desastrosa gestão antipopular da política de águas para o DF e Entorno. O governador Rodrigo Rollemberg, do PSB, não apenas sabia dos graves problemas desde o início de seu mandato como também preferiu destinar seus recursos e energia para outras questões, acreditando que seus milhões em publicidade anualmente poderiam reverter uma responsabilização dele por ineficácia e uma gestão antipopular e antiecológica da água e da natureza no Distrito Federal.

Mesmo hoje, diante da mais grave crise de abastecimento da história do DF, o governo ainda mantém seu ataque às áreas preservadas em nome da especulação imobiliária. Neste exato momento, o GDF planeja a expansão do trecho 2 do Setor Taquari, alegando falta de moradia, avançando sobre cerrado nativo e ameaçando destruir as 102 nascentes e 9 córregos da região da Serrinha, que abastecem a Bacia do Paranoá. Além dessa área, novas destruições na região do Bananal, em rios como o Mestre D´Armas, em territórios indígenas de cerrado e nascentes preservadas como o Recanto dos Encantados (da etnia Xukuru), demonstram que nada vai parar o governo e os empresários em sua sanha por destruir todo o cerrado pelo lucro. A única coisa que pode detê-los é a resistência popular.

Uma alternativa popular e agroecológica para a crise da água

O Distrito Federal e o Entorno possuem uma história de grande resistência às violações, à especulação imobiliária, à concentração de terra na cidade e no campo e à destruição ambiental. A população indignada em 2009 ocupou a Câmara Legislativa por vários dias e derrubou o governador Arruda, PaulOOctávio e seus sucessores, na ocupação legislativa de maior duração já realizada numa capital latino-americana. Centenas também resistiram nas trincheiras do Santuário dos Pajés contra as construtoras e seus capangas que devastavam o cerrado para a construção do Setor Noroeste, bairro que tinha a previsão de ser o metro quadrado mais caro do país. Só nessa resistência, dezenas de pessoas foram presas, ameaçadas, agredidas e processadas, sendo que uma decisão judicial esse mês condenou um grupo de ativistas a pagar mais de 80 mil reais às construtoras por terem resistido à devastação (ainda cabe recurso dessa decisão). O DF também é palco de constantes ocupações de famílias sem-teto e sem-terra reivindicando reforma agrária e urbana, além de marchas e mobilizações para resistir a megaeventos, megaprojetos e retirada de direitos. A conclusão que chegamos é que, apesar da grande repressão, não faltam lutas e lutadores aqui.

Para pensar uma solução coletiva e popular à crise da água, movimentos sociais, grupos ambientais, ativistas e a população em geral estão se reunindo em assembleias populares da água, organizando atividades locais e se preparando para o Fórum Alternativo Mundial da Água, em março de 2018, quando Brasília se tornará o epicentro mundial das lutas pela água enquanto direito fundamental dos povos e da natureza. As reuniões, seminários, debates e panfletagens estão acontecendo em várias regiões, de forma horizontal, autônoma e suprapartidária e estão sendo tirados encaminhamentos para as próximas mobilizações nesse enfrentamento, que precisa do maior engajamento possível para avançar.

Finalmente as chuvas voltam a dar as caras no cerrado, mas seria um grave equívoco pensar que nossos problemas se resolvem com muita água caindo dos céus. Uma solução definitiva passa por uma gestão popular da água, por uma política séria de preservação dos biomas, pelo fim da especulação imobiliária, grilagem e o agronegócio e pelo engajamento de todas e todos na construção de uma nova sociedade com justiça social, em harmonia com a Mãe Terra e com o Bem Viver para todas e todos.

ÁGUA É VIDA, NÃO MERCADORIA!

Thiago Ávila é membro do Fórum Alternativo Mundial da Água, da Frente Povo Sem Medo e constrói as Assembleias Populares da Água.

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