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Privatização do saneamento e a onda neoliberal radicalizada

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01/12/2016

 

 

Profa Dra. Patrícia Campos Borja
Departamento de Engenharia Ambiental
Mestrado em Meio Ambiente, Águas e Saneamento

Coordenadora Técnica do Observatório do Saneamento Básico da Bahia
Escola Politécnica-UFBA

 

Em 1998, no auge do receituário do Consenso de Wasghinton, José Saramago proclamou a sua  indignação em relação ao processo agressivo de privatização de empresas estatais e serviços públicos na América Latina:

(...) Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan Chan, privatize-se a Capela Sistina, (...) privatize-se a cordilheira dos Andes, privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for o diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional (SARAMAGO, 1998).


     Como não se pode atribuir essa declaração a um rompante juvenil por parte de Saramago ou a seu atraso intelectual, dada a atualidade e reconhecimento de seu legado à literatura mundial contemporânea, pode-se arguir que tal insensatez deve-se à sua pouca intimidade com temas que mais se relacionam a um debate técnico e econômico. Ora, ao final, Saramago mais se aproximava das letras e da poesia do que do mundo dos negócios;  então, perdoai  por que ele não sabia o que dizia.

O debate sobre a privatização dos serviços públicos é permeado de estratégias que buscam desqualificar  o interlocutor atribuindo suas posições a rompantes românticos, a devaneios utópicos, a falta de conhecimento técnico-econômico e, por fim, a mera opções político-ideológicas. Assim, a desqualificação é um mecanismo usual para encerrar o debate e simplificá-lo.

A tese do pensamento único engendrada por Fukuyama e disseminada pelos neoliberais após o esgotamento do pacto da socialdemocracia do pós-guerra e do fracasso do socialismo real,  chega no debate sobre a privatização dos serviços, o que inclui os de saneamento. Constrói-se, com forte apoio da mídia, o consenso na sociedade de que a resistência à privatização envolve questões puramemente político-ideológicas. Dissemina-se a ideia de que não importa se o serviço é público ou privado, mas se o serviço é bem prestado.  Afirma-se que o Estado não tem dinheiro e que assim a parceria com o privado é a única alternativa. Proclama-se que basta uma forte regulação por parte do Estado e uma boa modelagem do negócio para se garantir bons serviços.

Anderson (1995), já nos anos 90, afirmava que a maior obra do neoliberalismo foi produzir o consenso na sociedade, “disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios”  (ibid., p. 23). Nada de estranho para as teses de Poulantzas e Gramsci,  para os quais a manutenção da ordem social envolve a produção do consenso e a legitimação do poder e dos projetos políticos dos grupos hegemônicos. Então, proclama-se: não há diferença entre público e o privado, o que há é apenas um debate político-ideológico.

Sim,  o que há é um debate político-ideológico sobre o papel do Estado no pós-fordismo e o lugar das políticas públicas e sociais. É um debate recorrente sobre justiça e direitos sociais nas sociedades avançadas. É um debate sobre os processos de acumulação e distribuição da riqueza socialmente produzida.  Diz respeito à estrutura social e ao modelo de desenvolvimento socioeconômico e ambiental.  Enfim, diz respeito ao projeto político de sociedade.  Sim,  refere-se ao debate sobre interesses privados frente aos interesses e direitos da coletividade,  do bem comum.  Diz respeito aos ganhos éticos civilizatórios  entorno dos direitos humanos, como direito à vida digna,  à moradia e, recentemente, à água e ao esgotamento sanitário, estes últimos finalmente reconhecidos pela ONU.

Assim,  como anuncia Saramago, não é possível  deixar de enfrentar a questão política-ideológica de fundo no debate sobre a privatização de serviços como os de saneamento básico, que por sua natureza devem estar em mãos públicas,  como a educação, a saúde e a água, dada a sua essencialidade à vida e emancipação humana. 

Nessa discussão é importante demarcar que no capitalismo avançado e financeirizado a  fronteira entre o público e o privado fica cada vez mais tênue.  Não que no Estado da Seguridade Social ou do Bem-Estar Social engendrado no pós-guerra não houvesse tais relações. Lá, como hoje, o papel do Estado é salvaguardar a produção, reprodução e valorização do Capital.  A questão é que hoje o regime de acumulação e o modo de regulação se alteraram substancialmente se comparados aos anos 40-60.  Ontem políticas nacionalistas,  pleno emprego,  promoção do consumo de massa e políticas de seguridade social universalistas para manter o crescimento econômico e os ganhos do Capital.  Com a crise dos anos 70, a internacionalização do Capital e a reestruturação produtiva, o Estado passa a assumir cada vez mais a regulação e a produzir substantivas modificações nas relações de trabalho e no seu papel nas políticas sociais, modificações estas que se aprofundam com a crise de 2008. Antes pacto entre Capital e Trabalho, agora pactos, “parcerias”, com as grandes corporações, que, como nunca antes, impõem aos Estados-nação fragilizados suas políticas sustentadas na financeirização de todas as relações sociais, apoderando-se cada vez mais dos gastos públicos com seus megaempreendimentos e negócios.  Atores privados assumem o papel mais importante na formulação das políticas e na sua implementação. Atribuições típicas do Estado passam para m ãos privadas e as multinacionais se colocam frente ao poder estatal. Nesse contexto, como afirmaram Marx e Engels no final do século XIX “tudo que é sólido se desmancha no ar”.  Assim, no capitalismo avançado, o público e privado são fronteiras a serem removidas,  tais limites tornam-se um mero debate ideológico. 

Com a crise do capital de 2008 o receituário do Consenso de Washington e as políticas de ajuste estrutural são radicalizadas.  O Estado Competitivo, nas palavras de Hirstch (2010), como em todas as grandes crises, se organiza para manter a valorização do Capital.  Amplia-se o leque de negócios e suas modalidades.  A falência dos Estados-nação e o acúmulo de riqueza das corporações formam uma confluência perversa que apontam para a sobremacia do capital financeiro sobre o produtivo e a retirada de direitos sociais sustentadas na débil resist&eci rc;ncia da sociedade.  Nesse momento, as políticas sociais do período fordista, imprescindíveis para garantir a solução keynesiana do consumo de massa, a proteção do trabalho e a valorização do Capital,  agora pode ser também submetida à lógica pura do Capital,  podendo também ser elevada à condição de mercadoria.  Assim é que a previdência social vem sendo desmontada e  as relações de trabalho vêm sendo precarizadas. Retoma-se os níveis de desemprego, a saúde e a educação passam a ser mercadorias, assim como a prestação dos serviços públicos de saneamento básico.  Os patrimônios culturais e naturais também passam a responder & agrave; lógica do Capital. 

Mas aqui é importante também demarcar que uma análise sobre a privatização não se esgota na questão político-ideológica ou do caráter das relações capitalistas de produção e reprodução, deve-se aprofundar outras dimensões como a social,  ambiental,  econômica e político-institucional.

A despeito da propagada eficiência do setor privado, a experiência internacional no campo do saneamento demonstra as ineficiências com elevação de tarifas, redução da qualidade da prestação dos serviços e baixos níveis de investimentos em novas infraestruturas, o que tem justificado a retomada dos serviços em uma série de cidades/municípios no mundo, inclusive Paris (HELLER; CASTRO, 2013).  Também,  a propagada maior imunidade às influências políticas e baixos níveis de corrupção não se sustenta na realidade,  vide os escândalos de corrupção dos grupos Vivendi na França e a promiscuidade entre homens de negócios e dos governos,  o que inclui a dança das cadeiras, ambas questões reveladas no documentário Water Makes Money. No Brasil,  o assédio das empresas junto aos governos torna-se uma prática. São oferecidos um conjunto de "vantagens" aos gestores a partir de propostas que sequer são estudadas e avaliadas responsavelmente, já que estão submetidas ao mantra mágico de que o privado é melhor que o público. 

No campo político-institucional dois pontos merecem destaque. O primeiro diz respeito à regulação.  O discurso da defesa da participação privada é que o ente regulador, autônomo política e financeiramente,  vai salvaguardar os interesses públicos.  A questão é que não basta dispor de um ente regulador para assegurar bons contratos. Os contratos já são concebidos para garantir a rentabilidade do Capital e controlar os riscos associados ao negócio, via de regra sob forte financiamento dos bancos públicos, a despeito da proclamada falta de recursos. Assim é que na Grande Recife a Parceria Público Privada (PPP) para a prestação dos serviços de esgotamento sanitário, feita com a empresa estadual de água e esgoto e garantida com recursos do BNDES, excluiu a periferia da Cidade detentora do maior deficit.  Também a PPP da Embasa para o Sistema de Disposição Oceânica do Jaguaribe, assegurou, via contrato, risco zero à contratada Foz do Brasil/ Odebrecht Ambiental, já que a contraprestação do serviço é assegurada pelo direcionamento dos pagamentos dos usuários adimplentes diretamente para a conta bancária da empresa.  Assim, a Odebrecht além de ganhar 50%[ 1 ] a mais pela prestação dos serviços tem assegurado o seu futuramento sem riscos. Outra questão do ente regulador é que, não só no Brasil como no mundo, a regulação e suas instâncias estão submetidas aos interesses do Capital e, longe de dispor de autonomia, estão sob a égide do largo poder das corporações que inclusive influenciam em suas normas,  no ritmo e alcance de suas ações e na definição de seu corpo diretivo.

Outra questão relacionada à dimensão político-institucional diz respeito ao nível de adesão  dos projetos e contratos à política setorial que, em geral, demoraram décadas para serem formuladas e conquistadas pela sociedade.  No caso da saúde, por exemplo, até que ponto os contratos de PPP respondem aos preceitos constitucionais do direito de todos à saúde,  esta entendida como um conjunto de ações de promoção,  prevenção e proteção à saúde?  O que se observa hoje na atuação da iniciativa privada na saúde é o fortalecimento do complexo médico-hospitalar de assistência individual em detrimento das ações de promoção à saúde e prevenção de enfermi dades. No campo da educação,  setor reconhecido como de alta lucratividade, o que se vê avançar é um conglomerado monopolista que tem transformado a educação em uma mera mercadoria. No campo do saneamento,  princípios importantes que conformam o que hoje pode-se chamar do ideário das políticas públicas de saneamento básico, presentes na Lei Nacional de Saneamento Básico de 2007 (LNSB) e no Plano Nacional de Saneamento Básico, serão duramente fragilizados com a participação privada na prestação dos serviços.  O saneamento na visão neoliberal e privatista será definitivamente uma obra de infraestrutura e um serviço a ser prestado aos clientes capazes de pagar.  A visão recentemente construída do saneamento como direito, como uma obra social, ou dito de outra forma, o saneamento promocio nal (SOUZA et al., 2015), que sequer se conseguiu praticar, está fadada a uma imagem difusa e irrealizável. Assim,  a universalidade, a integralidade e a intersetorialidade serão princípios de difícil realização nesse cenário.  Também, a promoção de tecnologias apropriadas às realidades sociais será um mero deleite de projetos demonstração.  Os esforços para a preservação de mananciais que exigem políticas integradas e intersetoriais no campo do desenvolvimento urbano,  do desenvolvimento agrário, da gestão das águas e do meio ambiente estarão fadadas à marginalidade e fragmentação,  como hoje já estão.

Ainda considerando as diversas dimensões da análise chega-se à dimensão social.  Dois pontos merecem destaque:  um deles diz respeito à desigualdade e à exclusão.  Certamente que um modelo de prestação de serviços que se assenta na lógica da eficiência econômica e da lucratividade do Capital não vai responder a outras lógicas como a da justiça e da inclusão social. Sobre esse ponto diversos exemplos podem ser citados.  O primeiro e o mais emblemático foi o de Cochabamba na Bolívia onde a empresa norte-americana Bechtel promoveu aumentos de tarifas tão significativos que levou a exclusão do acesso aos serviços aos mais vulnerabilizados, gerando uma revolta social que veio a ser conhecida como a Guerra da Água.  No Brasil, o caso mais emblem& aacute;tico envolveu a recente crise hídrica de São Paulo que, entre outros fatores, foi embalada pela falta de investimentos em infraestrutura em contraposição à garantia dos dividendos dos acionistas, já que a Sabesp abriu seu capital e hoje o Estado de São Paulo detém apenas 50,3% das ações. O segundo ponto que merece destaque na dimensão social relaciona-se ao controle social, um princípio fundamental da LNSB.  Diante dos processos de fragilização dos movimentos sociais e de esquerda no Brasil e da pouca permeabilidade e resistência das empresas privadas aos processos participativos autônomos e críticos, o que se espera são recuos substantivos nos mecanismos de controle social recentemente conquistados na LNSB, que sequer foram postos em prática.

Diante do exposto, a promoção da participação privada nos serviços de saneamento responde à lógica do capitalismo avançado que assume no Brasil contornos altamente conservadores, o que se poderia chamar de um neoliberalismo conservador radical de direita. Assim, a proposta do governo Temer, já anunciada na Um Ponte para o Futuro, nada mais é do que a radicalização do projeto neoliberal que já vinha sendo colocado em prática desde o governo do presidente José Sarney, em 1990; que tomou mais força no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995; e que ganhou segurança institucional e jurídica nos governos de Lula e Dilma (2003-2016). No Governo Temer, a Lei n. 13.334 /2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI); o anúncio do programa de concessões proposto pela União para a área de saneamento, a ser iniciado nos estados do Rio de Janeiro, Pará e Rondônia (BNDES, 2016); e, ainda, a notícia recente divulgada pelo Jornal Correio do Brasil de que o Aquífero Guarani constará na lista de bens públicos privatizáveis, são iniciativas que cristalizam o tom agressivo que o novo governo apresenta para a área de saneamento básico no País.

Caberá, nesse cenário, à sociedade brasileira, aos profissionais e aos militantes do saneamento criarem as condições políticas e sociais para a resistência a esta nova investida neoliberal que colocará em risco a universalização do saneamento básico no Brasil.

 

Referências

ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER e GENTILI (org). Pós-neoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

BNDES. Programa de Parcerias para Investimentos (PPI). Disponível em: http://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/ppi. Acesso: 26 nov. 2016.

HELLER, Léo; CASTRO, José Esteban. Política Pública e gestão de serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013.

HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

SOUZA, Cezarina Maria Nobre; COSTA, André Monteiro; MORAES, Luiz Roberto Santos; FREITAS, Carlos Machado de. Saneamento: Promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. 

SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote – Diário III. Lisboa: Caminho, 1998.

 


[ 1 ] Estudos da Embasa apontam que se a prestação dos serviços fosse feita pela Empresa seria 50% mais barato.

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