Profa Dra. Patrícia Campos Borja
Departamento de Engenharia Ambiental
Mestrado em Meio Ambiente, Águas e Saneamento
Coordenadora Técnica do Observatório do Saneamento Básico da Bahia
Escola Politécnica-UFBA
Em 1998, no auge do receituário do Consenso de Wasghinton, José Saramago proclamou a sua indignação em relação ao processo agressivo de privatização de empresas estatais e serviços públicos na América Latina:
(...) Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan Chan, privatize-se a Capela Sistina, (...) privatize-se a cordilheira dos Andes, privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for o diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional (SARAMAGO, 1998).
Como não se pode atribuir essa declaração a um rompante juvenil por parte de Saramago ou a seu atraso intelectual, dada a atualidade e reconhecimento de seu legado à literatura mundial contemporânea, pode-se arguir que tal insensatez deve-se à sua pouca intimidade com temas que mais se relacionam a um debate técnico e econômico. Ora, ao final, Saramago mais se aproximava das letras e da poesia do que do mundo dos negócios; então, perdoai por que ele não sabia o que dizia.
O debate sobre a privatização dos serviços públicos é permeado de estratégias que buscam desqualificar o interlocutor atribuindo suas posições a rompantes românticos, a devaneios utópicos, a falta de conhecimento técnico-econômico e, por fim, a mera opções político-ideológicas. Assim, a desqualificação é um mecanismo usual para encerrar o debate e simplificá-lo.
A tese do pensamento único engendrada por Fukuyama e disseminada pelos neoliberais após o esgotamento do pacto da socialdemocracia do pós-guerra e do fracasso do socialismo real, chega no debate sobre a privatização dos serviços, o que inclui os de saneamento. Constrói-se, com forte apoio da mídia, o consenso na sociedade de que a resistência à privatização envolve questões puramemente político-ideológicas. Dissemina-se a ideia de que não importa se o serviço é público ou privado, mas se o serviço é bem prestado. Afirma-se que o Estado não tem dinheiro e que assim a parceria com o privado é a única alternativa. Proclama-se que basta uma forte regulação por parte do Estado e uma boa modelagem do negócio para se garantir bons serviços.
Anderson (1995), já nos anos 90, afirmava que a maior obra do neoliberalismo foi produzir o consenso na sociedade, “disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios” (ibid., p. 23). Nada de estranho para as teses de Poulantzas e Gramsci, para os quais a manutenção da ordem social envolve a produção do consenso e a legitimação do poder e dos projetos políticos dos grupos hegemônicos. Então, proclama-se: não há diferença entre público e o privado, o que há é apenas um debate político-ideológico.
Sim, o que há é um debate político-ideológico sobre o papel do Estado no pós-fordismo e o lugar das políticas públicas e sociais. É um debate recorrente sobre justiça e direitos sociais nas sociedades avançadas. É um debate sobre os processos de acumulação e distribuição da riqueza socialmente produzida. Diz respeito à estrutura social e ao modelo de desenvolvimento socioeconômico e ambiental. Enfim, diz respeito ao projeto político de sociedade. Sim, refere-se ao debate sobre interesses privados frente aos interesses e direitos da coletividade, do bem comum. Diz respeito aos ganhos éticos civilizatórios entorno dos direitos humanos, como direito à vida digna, à moradia e, recentemente, à água e ao esgotamento sanitário, estes últimos finalmente reconhecidos pela ONU.
Assim, como anuncia Saramago, não é possível deixar de enfrentar a questão política-ideológica de fundo no debate sobre a privatização de serviços como os de saneamento básico, que por sua natureza devem estar em mãos públicas, como a educação, a saúde e a água, dada a sua essencialidade à vida e emancipação humana.
Nessa discussão é importante demarcar que no capitalismo avançado e financeirizado a fronteira entre o público e o privado fica cada vez mais tênue. Não que no Estado da Seguridade Social ou do Bem-Estar Social engendrado no pós-guerra não houvesse tais relações. Lá, como hoje, o papel do Estado é salvaguardar a produção, reprodução e valorização do Capital. A questão é que hoje o regime de acumulação e o modo de regulação se alteraram substancialmente se comparados aos anos 40-60. Ontem políticas nacionalistas, pleno emprego, promoção do consumo de massa e políticas de seguridade social universalistas para manter o crescimento econômico e os ganhos do Capital. Com a crise dos anos 70, a internacionalização do Capital e a reestruturação produtiva, o Estado passa a assumir cada vez mais a regulação e a produzir substantivas modificações nas relações de trabalho e no seu papel nas políticas sociais, modificações estas que se aprofundam com a crise de 2008. Antes pacto entre Capital e Trabalho, agora pactos, “parcerias”, com as grandes corporações, que, como nunca antes, impõem aos Estados-nação fragilizados suas políticas sustentadas na financeirização de todas as relações sociais, apoderando-se cada vez mais dos gastos públicos com seus megaempreendimentos e negócios. Atores privados assumem o papel mais importante na formulação das políticas e na sua implementação. Atribuições típicas do Estado passam para m ãos privadas e as multinacionais se colocam frente ao poder estatal. Nesse contexto, como afirmaram Marx e Engels no final do século XIX “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Assim, no capitalismo avançado, o público e privado são fronteiras a serem removidas, tais limites tornam-se um mero debate ideológico.
Com a crise do capital de 2008 o receituário do Consenso de Washington e as políticas de ajuste estrutural são radicalizadas. O Estado Competitivo, nas palavras de Hirstch (2010), como em todas as grandes crises, se organiza para manter a valorização do Capital. Amplia-se o leque de negócios e suas modalidades. A falência dos Estados-nação e o acúmulo de riqueza das corporações formam uma confluência perversa que apontam para a sobremacia do capital financeiro sobre o produtivo e a retirada de direitos sociais sustentadas na débil resist&eci rc;ncia da sociedade. Nesse momento, as políticas sociais do período fordista, imprescindíveis para garantir a solução keynesiana do consumo de massa, a proteção do trabalho e a valorização do Capital, agora pode ser também submetida à lógica pura do Capital, podendo também ser elevada à condição de mercadoria. Assim é que a previdência social vem sendo desmontada e as relações de trabalho vêm sendo precarizadas. Retoma-se os níveis de desemprego, a saúde e a educação passam a ser mercadorias, assim como a prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Os patrimônios culturais e naturais também passam a responder & agrave; lógica do Capital.
Mas aqui é importante também demarcar que uma análise sobre a privatização não se esgota na questão político-ideológica ou do caráter das relações capitalistas de produção e reprodução, deve-se aprofundar outras dimensões como a social, ambiental, econômica e político-institucional.
A despeito da propagada eficiência do setor privado, a experiência internacional no campo do saneamento demonstra as ineficiências com elevação de tarifas, redução da qualidade da prestação dos serviços e baixos níveis de investimentos em novas infraestruturas, o que tem justificado a retomada dos serviços em uma série de cidades/municípios no mundo, inclusive Paris (HELLER; CASTRO, 2013). Também, a propagada maior imunidade às influências políticas e baixos níveis de corrupção não se sustenta na realidade, vide os escândalos de corrupção dos grupos Vivendi na França e a promiscuidade entre homens de negócios e dos governos, o que inclui a dança das cadeiras, ambas questões reveladas no documentário Water Makes Money. No Brasil, o assédio das empresas junto aos governos torna-se uma prática. São oferecidos um conjunto de "vantagens" aos gestores a partir de propostas que sequer são estudadas e avaliadas responsavelmente, já que estão submetidas ao mantra mágico de que o privado é melhor que o público.
No campo político-institucional dois pontos merecem destaque. O primeiro diz respeito à regulação. O discurso da defesa da participação privada é que o ente regulador, autônomo política e financeiramente, vai salvaguardar os interesses públicos. A questão é que não basta dispor de um ente regulador para assegurar bons contratos. Os contratos já são concebidos para garantir a rentabilidade do Capital e controlar os riscos associados ao negócio, via de regra sob forte financiamento dos bancos públicos, a despeito da proclamada falta de recursos. Assim é que na Grande Recife a Parceria Público Privada (PPP) para a prestação dos serviços de esgotamento sanitário, feita com a empresa estadual de água e esgoto e garantida com recursos do BNDES, excluiu a periferia da Cidade detentora do maior deficit. Também a PPP da Embasa para o Sistema de Disposição Oceânica do Jaguaribe, assegurou, via contrato, risco zero à contratada Foz do Brasil/ Odebrecht Ambiental, já que a contraprestação do serviço é assegurada pelo direcionamento dos pagamentos dos usuários adimplentes diretamente para a conta bancária da empresa. Assim, a Odebrecht além de ganhar 50%[ 1 ] a mais pela prestação dos serviços tem assegurado o seu futuramento sem riscos. Outra questão do ente regulador é que, não só no Brasil como no mundo, a regulação e suas instâncias estão submetidas aos interesses do Capital e, longe de dispor de autonomia, estão sob a égide do largo poder das corporações que inclusive influenciam em suas normas, no ritmo e alcance de suas ações e na definição de seu corpo diretivo.
Outra questão relacionada à dimensão político-institucional diz respeito ao nível de adesão dos projetos e contratos à política setorial que, em geral, demoraram décadas para serem formuladas e conquistadas pela sociedade. No caso da saúde, por exemplo, até que ponto os contratos de PPP respondem aos preceitos constitucionais do direito de todos à saúde, esta entendida como um conjunto de ações de promoção, prevenção e proteção à saúde? O que se observa hoje na atuação da iniciativa privada na saúde é o fortalecimento do complexo médico-hospitalar de assistência individual em detrimento das ações de promoção à saúde e prevenção de enfermi dades. No campo da educação, setor reconhecido como de alta lucratividade, o que se vê avançar é um conglomerado monopolista que tem transformado a educação em uma mera mercadoria. No campo do saneamento, princípios importantes que conformam o que hoje pode-se chamar do ideário das políticas públicas de saneamento básico, presentes na Lei Nacional de Saneamento Básico de 2007 (LNSB) e no Plano Nacional de Saneamento Básico, serão duramente fragilizados com a participação privada na prestação dos serviços. O saneamento na visão neoliberal e privatista será definitivamente uma obra de infraestrutura e um serviço a ser prestado aos clientes capazes de pagar. A visão recentemente construída do saneamento como direito, como uma obra social, ou dito de outra forma, o saneamento promocio nal (SOUZA et al., 2015), que sequer se conseguiu praticar, está fadada a uma imagem difusa e irrealizável. Assim, a universalidade, a integralidade e a intersetorialidade serão princípios de difícil realização nesse cenário. Também, a promoção de tecnologias apropriadas às realidades sociais será um mero deleite de projetos demonstração. Os esforços para a preservação de mananciais que exigem políticas integradas e intersetoriais no campo do desenvolvimento urbano, do desenvolvimento agrário, da gestão das águas e do meio ambiente estarão fadadas à marginalidade e fragmentação, como hoje já estão.
Ainda considerando as diversas dimensões da análise chega-se à dimensão social. Dois pontos merecem destaque: um deles diz respeito à desigualdade e à exclusão. Certamente que um modelo de prestação de serviços que se assenta na lógica da eficiência econômica e da lucratividade do Capital não vai responder a outras lógicas como a da justiça e da inclusão social. Sobre esse ponto diversos exemplos podem ser citados. O primeiro e o mais emblemático foi o de Cochabamba na Bolívia onde a empresa norte-americana Bechtel promoveu aumentos de tarifas tão significativos que levou a exclusão do acesso aos serviços aos mais vulnerabilizados, gerando uma revolta social que veio a ser conhecida como a Guerra da Água. No Brasil, o caso mais emblem& aacute;tico envolveu a recente crise hídrica de São Paulo que, entre outros fatores, foi embalada pela falta de investimentos em infraestrutura em contraposição à garantia dos dividendos dos acionistas, já que a Sabesp abriu seu capital e hoje o Estado de São Paulo detém apenas 50,3% das ações. O segundo ponto que merece destaque na dimensão social relaciona-se ao controle social, um princípio fundamental da LNSB. Diante dos processos de fragilização dos movimentos sociais e de esquerda no Brasil e da pouca permeabilidade e resistência das empresas privadas aos processos participativos autônomos e críticos, o que se espera são recuos substantivos nos mecanismos de controle social recentemente conquistados na LNSB, que sequer foram postos em prática.
Diante do exposto, a promoção da participação privada nos serviços de saneamento responde à lógica do capitalismo avançado que assume no Brasil contornos altamente conservadores, o que se poderia chamar de um neoliberalismo conservador radical de direita. Assim, a proposta do governo Temer, já anunciada na Um Ponte para o Futuro, nada mais é do que a radicalização do projeto neoliberal que já vinha sendo colocado em prática desde o governo do presidente José Sarney, em 1990; que tomou mais força no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995; e que ganhou segurança institucional e jurídica nos governos de Lula e Dilma (2003-2016). No Governo Temer, a Lei n. 13.334 /2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI); o anúncio do programa de concessões proposto pela União para a área de saneamento, a ser iniciado nos estados do Rio de Janeiro, Pará e Rondônia (BNDES, 2016); e, ainda, a notícia recente divulgada pelo Jornal Correio do Brasil de que o Aquífero Guarani constará na lista de bens públicos privatizáveis, são iniciativas que cristalizam o tom agressivo que o novo governo apresenta para a área de saneamento básico no País.
Caberá, nesse cenário, à sociedade brasileira, aos profissionais e aos militantes do saneamento criarem as condições políticas e sociais para a resistência a esta nova investida neoliberal que colocará em risco a universalização do saneamento básico no Brasil.
Referências
ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER e GENTILI (org). Pós-neoliberalismo. As Políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
BNDES. Programa de Parcerias para Investimentos (PPI). Disponível em: http://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/ppi. Acesso: 26 nov. 2016.
HELLER, Léo; CASTRO, José Esteban. Política Pública e gestão de serviços de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013.
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
SOUZA, Cezarina Maria Nobre; COSTA, André Monteiro; MORAES, Luiz Roberto Santos; FREITAS, Carlos Machado de. Saneamento: Promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.
SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote – Diário III. Lisboa: Caminho, 1998.
[ 1 ] Estudos da Embasa apontam que se a prestação dos serviços fosse feita pela Empresa seria 50% mais barato.
O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas no Estado de Goiás (STIUEG) teve seu início no ano de 1949, com a criação da Associação dos Funcionários da CELG. O segundo passo importante dessa história foi dado com a extensão de base para a Associação dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas no Estado de Goiás...
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