A equipe econômica da presidenta Dilma Rousseff tem gasto muita saliva e sola de sapato para convencer os empresários de que é preciso aumentar os investimentos no País. Dilma e seus principais ministros têm se revezado no corpo a corpo com os representantes do setor produtivo na tentativa de mostrar que o Brasil continua sendo um mar de oportunidades para quem não se deixa contaminar pelo mau agouro das previsões do mercado financeiro. O esforço concentrado para que o empresariado mantenha os olhos no lado meio cheio do copo é mais do que legítimo. No entanto, de nada adianta esse empenho, se algumas instâncias do próprio governo não deixam que as empresas do setor privado executem seus planos.
Autarquias e agências estratégicas, que deveriam incentivar o ambiente de negócios, se perdem num sem-fim de solicitações, travando ou deixando evaporar negócios preciosos. O gaúcho Rafael Madke, sócio do Grupo RPH, fabricante de medicamentos para medicina molecular, é ao mesmo tempo testemunho ocular e vítima da ação do fogo amigo dentro do governo. Há três anos ele vinha tentando registrar na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) um produto do seu portfólio, o Mibi, reagente utilizado para exames do coração. “Temos pedidos para exportar, pois nosso preço é competitivo, mas não podemos fazê-lo sem o registro”, diz Madke, que fornece para hospitais públicos brasileiros.
Enquanto o reagente da RPH custa R$ 110, ou cerca de US$ 45, o produto é vendido no mercado internacional a US$ 350. “Em vez de investir em pesquisa e desenvolvimento, as empresas precisam gastar na contratação de assessoria jurídica, para conseguir o que precisam junto ao governo.” A indústria farmacêutica, aliás, é uma das mais prejudicadas pela morosidade e inoperância de certos órgãos governamentais. “Hoje a demora na liberação de autorizações é o maior problema no mercado farmacêutico no Brasil”, diz Antônio Brito, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que representa os grandes laboratórios.
Para conseguir a licença de um medicamento, uma empresa tem de esperar, em média, dois anos, enquanto nos Estados Unidos o prazo não passa de quatro meses. Foi essa demora em procedimentos essenciais para a indústria do setor que levou a Interfarma a criar o “Demorômetro”, boletim que atualiza o tempo médio que a Anvisa demora para liberar autorizações de medicamentos. Na semana passada, o tempo médio era de 630 dias. Além de normas confusas, que muitas vezes exigem a contratação de consultorias especializadas em “traduzir” as demandas das autarquias e agências reguladoras, faltam servidores para executar o trabalho.
A Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras Federais (Aner Brasil) estima que atualmente há um déficit de dois mil funcionários nos dez órgãos que representa. Em algumas faltam, inclusive, diretores para tomar decisões estratégicas. Até a segunda semana de agosto, dos 47 cargos de direção disponíveis, nove estavam desocupados. Na Aneel, responsável pela fiscalização das áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, a diretoria deveria ser composta por cinco membros, mas está com duas cadeiras vagas, que ainda não foram preenchidas pela presidenta Dilma. Em dezembro, vence o mandato de outro diretor.
A Aneel acompanha o cronograma da execução de hidrelétricas, além de conferir se os critérios técnicos adotados estão adequados. Os atrasos nas nomeações se perdem, muitas vezes, em disputas políticas. Depois que um nome é indicado pela presidenta para ocupar uma diretoria, é necessária a aprovação do Congresso. O PT e o PMDB disputaram por meses, por exemplo, uma das diretorias da Anvisa, que só foi preenchida em junho passado. Na área de infraestrutura, os gargalos na área se multiplicaram neste ano, em vez de serem reduzidos. Desde 25 de junho, por exemplo, 2,5 mil servidores do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) estão em greve.
Eles reivindicam um reajuste que equipare seus salários ao dos demais servidores das agências reguladoras, que têm uma remuneração 40% maior. O Ministério do Planejamento vem tentando negociar um reajuste de 15,8%, dividido em três parcelas, como fez com várias categorias que entraram em greve no ano passado, mas não houve consenso. Tanto o Dnit quanto os sindicatos que representam os servidores do órgão acreditam que a paralisação está longe de terminar. Enquanto isso, projetos importantes como o edital de licitação para duplicação da BR-381, em Minas Gerais, mais conhecida como “Rodovia da Morte”, estão parados. O governo federal anunciou a obra há um ano e até hoje o projeto não saiu do papel.
Além de obras paradas, a greve está reduzindo os investimentos no setor, uma verdadeira heresia no contexto atual do País. Segundo a ONG Contas Abertas, de janeiro a julho deste ano o Dnit desembolsou R$ 450,7 milhões em obras públicas, patamar 42% menor que o do mesmo período do ano passado. O diretor-geral do Departamento, Jorge Fraxe, argumenta que a greve não atrapalhou o andamento das obras, embora admita que todos os processos administrativos estejam parados. Para Fraxe, as obras sob responsabilidade do órgão dependem também dos prazos a serem cumpridos por outras instâncias do governo. “Antes de começar um projeto, a demora para liberar o licenciamento ambiental atrasa o início da construção”, afirma.
Ele lembra ainda que órgãos de controle, como a Controladoria-Geral da União (CGU), costumam questionar os custos de uma rodovia, o que pode alterar contratos firmados, imprimindo um ritmo lento e até as paralisações nas obras. “Quando as empresas não concordam com custos menores, pode haver até uma nova licitação, o que posterga a conclusão de uma rodovia e, via de regra, onera os custos”, diz. “O desafio não é só do Dnit.” O presidente da Associação Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias (Aneor), José Alberto Pereira, concorda e aponta tanto os atrasos do Ibama, responsável pelas licenças ambientais, como as demoras nos processos de desapropriação de área que estão parados na Justiça como gargalos constantes.
Mas a falta de servidores do Dnit para autorizar pagamentos começa a afetar a saúde financeira das empresas: elas têm R$ 700 milhões a receber por obras já executadas. “Estamos com dificuldade para honrar compromissos com salários e encargos”, diz Pereira. O ministro dos Transportes, César Borges, reconhece que um dos maiores adversários do governo é a dificuldade para navegar na burocracia interna, pois é preciso enfrentar um verdadeiro “cipoal de legislações” para iniciar ou concluir uma obra. “É preciso passar por uma via-crúcis, que inclui, além do Ibama, a Funai (para questões indígenas), Iphan (patrimônio histórico), além de controladores como Ministério Público, Tribunal de Contas da União e CGU”, disse ele à DINHEIRO.
“Em vez de fiscalizar, os órgãos estão querendo fazer gestão.” É um quadro preocupante quando o País está prestes a promover uma série de concessões para estender a malha de rodovias e ferrovias. “O governo anunciou dez mil quilômetros de concessões em ferrovias até 2020”, lembra Rodrigo Vilaça, presidente da Associação Nacional dos Transportes Ferroviários, que representa as operadoras de cargas. Mas para chegar lá, é preciso reduzir em 40% o tempo de execução. “Somente a redução da burocracia pode trazer bons resultados.” Desobstruir a ponte entre as agências e o setor privado é um das saídas para transformar o País num canteiro de obras e abrir os caminhos para que se concretizem os planos de investimentos e criação de negócios.
Na Anvisa, pelo menos, o presidente Dirceu Barbano tem se mostrado sensível aos problemas da autarquia. Para resolver o caso dos medicamentos genéricos – há mais de mil deles na fila à espera de um registro –, a agência criou, em maio, um cadastro eletrônico com o objetivo de acelerar as liberações. Como resultado, o prazo para concessão da licença já foi reduzido, em alguns casos, de 24 para seis meses. “Temos a preocupação em tornar a estrutura mais ágil e limpar tudo que é burocrático”, afirma Barbano, que pretende reduzir o tempo de espera médio dos registros de dois anos para nove meses. Por coincidência, na semana em que a DINHEIRO conversou com Madke, da RPH, a tão aguardada licença para poder exportar foi concedida. Feliz, o empresário já projetava o aumento da receita com as exportações. “Agora é só fazer gol”, diz Madke.
Fonte: Isto É Dinheiro