Para a Federação Departamental Cochabambina de Regantes (Fedcor), que organiza os moradores de comunidades rurais e urbanas dotadas de sistemas comunitários de água, a guerra, porém, começou ainda em 1999. Atentos ao problema dos recursos hídricos, a Fedcor foi vanguarda na luta contra a privatização do sistema de água potável e esgoto de Cochabamba, realizando bloqueios já nos dias 4 e 5 de novembro daquele ano.
“Criaram a lei 2029 para permitir a privatização, mas não só venderam a empresa pública [Semapa] como permitiram a Águas do Tunari [consórcio de empresas beneficiado] ser dona de todas as fontes de água”, explica Carmen Peredo, atual senadora suplente pelo Movimento ao Socialismo (MAS) e então dirigente da Fedcor. De acordo com o representante da organização Água Sustentável, Oscar Campanini, os regantes se levantaram primeiro porque o contrato significava a perda de sistemas comunitários que sequer haviam sido criados pelo Estado. “Nas áreas rurais, eles são anteriores até mesmo à Bolívia, foram criados durante o Império Inca, com o trabalho e o dinheiro da comunidade, geridos até hoje de forma comunitária pelas organizações camponesas ou indígenas. Nas áreas urbanas, diante da ausência do Estado na periferia, estes sistemas são a mescla da experiência organizativa dos mineiros, que migraram para a cidade com o desmonte do setor pelo neoliberalismo, com essa tradição comunitária daqueles que migraram da área rural. Só na zona sul de Cochabamba existem cerca de 100 sistemas comunitários que atendem a quase 200 mil pessoas. Nos municípios do entorno, são cerca de 800”, relata Campanini.
Porém, em janeiro do ano 2000, o anúncio de incremento de mais de 100% nas tarifas feito por Águas do Tunari cai como uma bomba na cidade Cochabamba e dá início a um massivo e extenso processo de mobilização que ocupa as ruas da cidade, e até mesmo de outros departamentos bolivianos, até abril de 2000, quando a empresa é expulsa do país. A população se revolta contra o consórcio encabeçado pela estadunidense Bechtel, que prometeu um projeto de 300 milhões de dólares para resolver os problemas de abastecimento da cidade, mas que, em sua conformação, concretizada dois dias antes da assinatura do contrato de concessão, declarava, em sua ata de fundação, apenas 10 mil dólares de capital.
As vitórias políticas
Para Ramiro Saravia, militante da Rede Tinku – organização político-cultural que tem como sede a principal praça da cidade (14 de Setembro) –, a Guerra da Água “foi uma escola de participação, de gente na rua e na praça que perdeu o medo e passou a ter confiança em si, articuladas pela Coordenadora da Água e da Vida”, instância que dirigiu as mobilizações e aglutinou todos os setores de Cochabamba, organizados ou não, “com democracia direta, da forma como sempre sonhamos”, relembra Saravia.
“Foram quase seis meses de mobilização permanente, todas as ruas, highlones [burguesas] ou não, estavam bloqueadas, sem exceção. Foi a primeira vez, depois de muito tempo, que se viu a unidade de diferentes classes e a aliança do campo com a cidade”, relata a senadora suplente do MAS.
Segundo o historiador, diretor da escola de formação política itinerante do MAS e prefeito interino de Cochabamba em 2008, Rafael Puente, “a novidade política foi a capacidade de auto-organização massiva na cidade”. Contudo, ele ressalta que o movimento não teria tal magnitude “se não estivesse permanentemente respaldado por um cordão camponês que apoiava e defendia a mobilização urbana, tanto na Cordilheira, como no Vale e no Trópico de Cochabamba”. De acordo com Puente, a guerra foi o ponto de inflexão do modelo neoliberal, “a primeira de muitas demonstrações de que a manutenção do modelo no país só seria possível a ferro e fogo” e, por isso, o início do atual processo de cambio.
Ele conta que, “pela primeira vez, a mobilização social não levantava uma bandeira de volta ao passado, à Revolução de 1952, mas uma visão adiante. A consigna era clara: a gestão social da água. O quarto grande bloco histórico da vida republicana do país, que foi o modelo neoliberal, se manteve intacto até 2000. Mas a expulsão de Águas de Tunari foi a sua primeira grande ferida”.
Segundo a senadora suplente Peredo, os guerreiros da água influíram de forma direta na Nova Constituição Política de Estado, colocando os recursos hídricos como um direito humano fundamental e estabelecendo “cadeados jurídicos que impedem a volta da tragédia”. Campanini afirma que a experiência acumulada com o conflito levou a Bolívia a encabeçar a luta pelo reconhecimento da água como um direito nos fóruns internacionais, “mas isso não é realidade porque países maiores, como o Brasil, jogam para o outro lado”.
Outros legados da Guerra da Água destacados por Campanini são a expulsão da transnacional franco-belga Suez de El Alto, em 2005, o aumento dos investimentos do Estado boliviano em água e o aumento da visibilidade dos sistemas comunitários: “Os anteriores governos atendiam, e mal, à parte central das cidades e o campo, mas não às zonas peri-urbanas, que têm uma gestão comunitária muito interessante, mas precisam de ajuda técnica e de infra-estrutura. Com a luta, eles são vistos pelas políticas públicas e já ganharam boa parte dos fundos públicos para o setor”.
A dívida histórica
Porém, segundo Puente, a bonita história do exercício do poder popular não conseguiu resolver velhos problemas. “Temos que dizer com frieza: essa gestão social não existe, a administração segue ineficiente, injusta e cara. Houve uma modernização tecnológica, aumentou um pouco as conexões, mas nada perto do que se esperava. Ganhamos a guerra, mas não conquistamos a paz”.
Segundo Campanini, cerca de 50% da rede deveria ser reinstalada, porque, do volume total captado pela Semapa, metade se perde com vazamentos. “Trabalhadores já comentaram que foram trocar tubos em alguns lugares, cavaram, mas não os encontraram. Os tubos estavam tão desgastados que eram simplesmente canais de terra ou pedra”, conta. Outro problema está nas conexões clandestinas manipuladas por grupos de trabalhadores da empresa e por políticos. “Aí esses grupos cobram por fora e, aliados a segmentos políticos, fazem chantagem eleitoral com a população prometendo novas conexões”, denuncia.
Em Cochabamba, boa parte da população ainda se abastece de carros-cisterna privados que cobram 20 bolivianos (R$ 5,27) pelo metro cúbico de água de baixa qualidade. A mesma quantidade, e de boa qualidade, fornecida pela Semapa custa, em média, 3 bolivianos.
“Eu pago mais de água do que luz e com freqüência temos escassez de água, em toda cidade. E a Semapa ainda contratou outra empresa só para efetuar cortes de quem não paga, é incrível”, relata, cabisbaixo, Saravia.
Mais triste do que constatar a continuidade de problemas estruturais, é ouvir porque o movimento que expulsou uma transnacional não assumiu o controle da empresa. Segundo o historiador Puente, “os dirigentes começar a disputar a notoriedade. Os dirigentes da Coordenadora claudicaram e vários deles aproveitaram o papel importante que tiveram para obter vantagens pessoais e passaram a partidos de direita”. Saravia afirma que a Coordenadora funcionou bem até 2002, quando chegaram as eleições e todos os 15 principais dirigentes foram candidatos. “Ofereceram deputação até para nós, mas não aceitamos porque o princípio da Coordenadora era a decisão conjunta, mas quando vimos todos já tinham decidido e estávamos sós”.
Na visão de Peredo, ex-dirigente da Fedcor, que tinha assento na direção da Coordenadora, o órgão se diluiu “porque outros companheiros tinham sua própria ótica e não havia a mesma linguagem”, gerando uma paralisia na organização que foi fundada no consenso. “Perdemos muito tempo e quando não fazemos a coisa no calor do momento, perdemos a oportunidade. Demoramos meses para fazer um novo estatuto da Semapa, mas havia muitas divergências sobre como deveria ser a empresa. Temos uma dívida histórica”, concluiu.
O sindicalista Oscar Oliveira, consolidado na opinião pública como principal dirigente da guerra, é apontado como um dos principais responsáveis pela má condução da reestatização por Puente. “Ele superestimou o momento histórico e seu papel, dizendo já em 2000 que o tema da água já era pequeno e que se dedicaria a lutar contra tudo o que foi o processo de capitalização das empresas públicas na Bolívia. Evidentemente era a batalha central, mas que se deu com o tempo. Assim, deixou a questão para Jorge Alvarado, um companheiro com méritos, mas que se isolou em meio às disputas e se perdeu na burocracia”.
O integrante da Rede Tinku, Saravia, eleva a crítica à Oliveira. “Fizeram da luta um negócio e com o dinheiro que deram a Cochabamba o Oliveira criou a Fundação Abril, que se especializou no tema água”.
Até mesmo o pequeno avanço conseguido na gestão da empresa – a eleição direta pela população de três diretores da Semapa – se perdeu. Segundo Puente, “no primeiro ano teve certo efeito, elegendo lutadores que participaram da luta, mas alguns deles tardaram pouco a somar-se à burocracia e à corrupção nessa e em outra instâncias. E a fé da cidadania diminuiu tão rapidamente que faz dois anos um candidato era eleito por 400 votos, num universo de 300 mil eleitores”.
Mesmo diante de tantas decepções, Saravia comenta que a derrota do neoliberalismo foi tão acachapante que o discurso privatista não ressurgiu. “O povo sabe que isso é pagar mais. O povo quer que melhore o serviço e que não haja corrupção”, sentenciou.
3 de setembro de 1999 – Assinado contrato entre governo e Águas do Tunari.
20 de outubro – Promulgada lei 2029, chamada de “Serviço de Água Potável e Esgoto”.
4 e 5 de novembro – Os regantes iniciam os bloqueios de ruas e estradas.
12 de novembro – Criação da Coordenadora da Água e da Vida.
11, 12 e 13 de janeiro de 2000 – A Coordenadora organiza um grande bloqueio contra o aumento das tarifas em mais de 100% e contra a lei 2029. Governo se compromete a rever as tarifas e a lei.
4 e 5 de fevereiro – A Coordenadora realiza a tomada de toda cidade e o Exército vai às ruas. Governo assina documento se comprometendo a retomar as tarifas anteriores.
26 de março – A Coordenadora realiza um referendo com mais de 50 mil votantes a favor da expulsão de Águas do Tunari.
4 de abril – Convocação de bloqueio indefinido.
6 de abril – Em reunião de negociação, prefeitura declara preso os dirigentes e governo central declara estado de sítio. Cerca de 50 mil pessoas tomam a praça central, onde está a sede da prefeitura. O prefeito volta atrás, desmente o estado de sítio e comunica a saída de Águas do Tunari da cidade.
7 de abril – Governo central nega o rompimento do contrato. Prefeito de Cochabamba renuncia e um novo estado de sítio é declarado. 22 dirigentes são presos.
8 de abril – As estradas de todo o Altiplano da Bolívia são bloqueadas, os enfrentamentos crescem e deixam um morto. Mas exército e polícia se retiram aos quartéis e a cidade fica nas mãos dos manifestantes.
9 de abril – Aniversário da Revolução de 1952. Autoridades pertencentes ao MNR (partido da Revolução) comparecem ao enterro do jovem assassinado e são agredidos pelos manifestantes. Governo central anuncia saída de Águas do Tunari.
10 de abril – A Coordenadora exige documento do governo oficializando sua posição. Ele se nega e acusa a rebelião de Cochabamba de ser fruto do “narcotráfico”. Manifestantes iniciam marcha massiva e governo realiza a rescisão do contrato.
11 de abril – Parlamento aprova a lei com as modificações propostas pela Coordenadora. No campanário da Igreja localizada na praça central de Cochabamba, é encontrado enforcado o jovem Juan Rodriguez, responsável por, durante a guerra, avisar a população da chegada do Exército e da Polícia com os toques do sino.
12 de abril – Terminam os bloqueios.
14 de abril – Presos são libertados e familiares de mortos e feridos indenizados.
*Dados retirados do livro “La guerra por el agua y por la vida”, de Ana Esther Ceceña. Um documentário sobre a Guerra da Água no endereço eletrônico
http://www.fundacionabril.org/detallesvideolista0.php?codigo_trailer=7&tema_trailer=Guerra%20del%20Agua.
Fonte: Portal Brasil de Fato
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