Os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário são prestados por operadores públicos na grande maioria dos municípios brasileiros, sendo que as empresas estaduais de saneamento, estão presentes em mais de 70% deles. A Lei Nacional de Saneamento, 11.1145 de 2007, já previa a possibilidade de prestação dos serviços por empresas privadas. A Lei 14.026/2020, que altera a Lei Nacional, induz o processo de privatização que tem sido apontado pela maior parte da mídia, de forma equivocada, como a solução necessária para enfrentar as deficiências do setor. Equivocada pois vai no sentido contrário dos principais determinantes das deficiências do saneamento, que se manifestam em especial pela inadequação dos serviços prestados à população carente que vive em situação vulnerável, que é aquela que tem também as maiores dificuldades em arcar com os custos destes serviços.
As deficiências do saneamento se manifestam principalmente nos setores onde a prestação do serviço é considerada pouco rentável, como nas favelas, morros, periferias, nas áreas de pouca densidade e na área rural, por exemplo. Mas cabe questionar o que se considera rentável. No caso do abastecimento de água e esgotamento sanitário, quer a prestação dos serviços seja pública ou privada, prevaleceu nas últimas décadas um olhar focado na rentabilidade financeira mais direta e imediata, custeando-se os serviços quase que exclusivamente com os recursos provenientes da tarifa de água e esgotos. Neste modelo, tudo que é oneroso e gera pouca receita é considerado problema, mesmo que seja estratégico para a saúde pública ou para o meio ambiente.
Uma das prestadoras de serviços de água e esgoto estaduais, considerada modelo para as demais, apresenta lucros bilionários em um cenário em que parte significativa do esgoto coletado é lançado sem tratamento nos corpos d’água, num cenário em que dezenas de milhares de pessoas em situação de rua enfrentam dificuldades atrozes para obter água e satisfazer suas necessidades básicas. Mesmo quando a tubulação chega às favelas, a água só chega em momentos especiais, e isso ocorre em plena pandemia da Covid 19. Ao que se deve esta contradição? O que se gasta em saneamento reverte em uma redução drástica do que se gasta com tratamento de doenças, só que os pagamentos saem de contas diferentes – para o saneamento, público ou privado, a máxima é o mero equilíbrio financeiro e em alguns casos, a alta lucratividade.
Houve radical descolamento do saneamento básico com as metas de saúde pública. As empresas têm sido avaliadas com parâmetros quantitativos que não se traduzem necessariamente em avanços na realização dos direitos humanos à água e ao saneamento. Construiu-se um imaginário de que eficiente é a prestadora de serviços de água e esgotos que tem as contas equilibradas ou é lucrativa. Que é natural gastar grandes montantes com o tratamento de doenças, mas que os recursos para viabilizar o saneamento para todos, inclusive os mais carentes, deve ser originário só da tarifa de água e esgotos. Acreditar que a empresa privada vai investir e atuar de forma incisiva onde está o déficit, nos locais e para os públicos que têm sido considerados pouco rentáveis, é claro equívoco.
Privilegiando a lógica do lucro, o que interessa ao privado é operar em grandes e médias cidades e em regiões metropolitanas, onde os níveis de cobertura (feito com recursos públicos) já são elevados e, portanto, a necessidade de investimento é menor. O resultado da privatização no Brasil e em outros países já demonstrou isso de forma clara. Em vários países do mundo se constata uma tendência de reestatização ou remunicipalização dos serviços de saneamento privatizados. Os motivos são vários, entre eles destacam-se: não cumprimento de contratos, baixos investimentos, aumento de tarifas e restrição do controle público da prestação dos serviços, ou seja, o que se apresenta são resultados pífios.
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