Soa cada vez mais alto o alarme da escassez da água no planeta. O seu som estridente alcança a população global de forma cada vez mais efetiva. Mas, afinal, o que é verídico nestes acordes catastróficos que ouvimos sem cessar nos últimos anos? Será real que logo não teremos água suficiente para todas as pessoas e estaremos envoltos em guerras já anunciadas por artigos, matérias de jornais, reportagens televisivas, documentários e postagens nas redes sociais? É óbvio que há escassez em algumas regiões do planeta. Sempre houve e haverá, e isso não negamos. Não há dúvida, no entanto, que há interesses econômicos por parte daqueles que amplificam o som alarmante da questão da escassez da água. O alarme soa tão ensurdecedor que já começa a abafar qualquer ruído que se contraponha a ele e questione as saídas apontadas para favorecer o Mercado da Água. Criar pânico facilita o convencimento dos que não veem outra possibilidade a não ser abraçar algumas soluções oferecidas diante da iminente sede que se aproxima. Não por coincidência, estas soluções são apresentadas por algumas das pessoas que alertam sobre a escassez propondo tornar a água uma mercadoria como outra qualquer e administrada pela lógica de mercado.
Refletindo sobre a Ideologia da água e privatização dos serviços de saneamento, José Eduardo de Campos Siqueira (2005, p. 40) menciona que “De maneira mais ou menos sutil, introduz-se, como consequência lógica, a justificação da mercantilização da água, na medida em que a escassez lhe agrega, necessariamente, valor econômico.” Vale lembrar que “o argumento da escassez remonta, principalmente, às formulações malthusianas que legitimam a desigualdade e a miséria como forma corretiva de crescimento populacional.” (FLORES; MISOCZKY, 2015, p. 242-243). Como vemos, o argumento não é novo, mas o seu alvo sim: a água.
O discurso da escassez é utilizado para amedrontar a população mundial e apresentar a privatização da água como solução mais eficaz para evitá-la. Em sua defesa, afirma-se que há muito desperdício no planeta e, ao pagar (e pagar caro) pela água, haverá menos gasto. Aqui vale ressaltar que não sou contra negócios privados. Porém, com a água não é possível negociar o seu valor como Bem Comum, pois dela não dependem apenas os seres humanos, mas toda e qualquer espécie do nosso planeta.
A escassez é real em várias partes do globo, como já afirmamos anteriormente. O que apontamos aqui é que existe uma amplificação da crise fazendo confundir falta de acesso (fato que acontece com várias populações das periferias urbanas e populações rurais) com a sua escassez. É mais uma tática dos defensores da privatização e mercantilização da água. No discurso propagado pelos neoliberais sobre este tema, não há referências ao fato de que 70% da água doce no planeta são gastos pelo agronegócio. A grande mídia, muitas vezes, manipula o discurso sem tocar em exemplos de mananciais que sofreram grandes perdas de volume por causa do agronegócio, a exemplo do Mar de Aral, na Ásia Central, e do Mar Morto, em Israel, que não recebem a mesma quantidade de água dos rios que neles deságuam como antes. No entanto, abundam campanhas contra o desperdício direcionadas para os usuários domésticos, incutindo até mesmo nas mentes das crianças a culpa por um banho mais demorado. Não que não devamos economizar água, longe disso. O problema é a culpabilização apenas do consumidor doméstico quando ele não é o vilão nesta história, utilizando esta narrativa como uma cortina de fumaça para esconder quem realmente está colocando as nossas reservas hídricas superficiais e subterrâneas em perigo pela exploração descontrolada.
Há um outro aspecto com a ampliação do discurso sobre a escassez que beneficia o Mercado da Água. Anunciada como uma mercadoria escassa, o seu valor cresce exponencialmente. Assim, ressaltam Flores e Misoczky (2015, p. 2420, “o conceito de escassez é um conceito muito caro às concepções teóricas que legitimam as relações capitalistas em termos de apropriação da natureza.” Se um elemento natural é abundante, ele perde a sua aura de mercadoria valiosa, já que é necessário que a sua procura supere a sua oferta para tornar-se mais caro e lucrativo. Como bem afirma Erik Swyngedouw (2004, p, 39), “sem a escassez, soluções ou mecanismos baseados no mercado simplesmente não funcionariam. Se necessário, portanto, a ‘escassez’ será eficientemente produzida, socialmente projetada.”
Muitos não sabem, mas está em tramitação no Senado o Projeto de Lei (PL) 495/20172, de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e que tem como relator o Senador José Serra (PSDB-SP), que cria os mercados de águas no Brasil. Leis como esta podem criar os chamados Especuladores da Água, situação já vivenciada em países como a Austrália e os Estados Unidos3. Essas leis foram aprovadas com a justificativa de que promoveriam uma “gestão eficiente dos recursos hídricos”. Não por coincidência, vejam o que diz a ementa deste PL: “Altera a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos.”
Palavras como gestão são repetidas como mantra quando se fala de água em nossos dias. A gestão reivindicada pelos privatistas da água não é a comunitária ou a que coloca os seres vivos como prioridade, mas a que está alicerçada em princípios técnico-mercadológicos. Já os termos recursos hídricos e água são defendidos pelos neoliberais como coisas separadas. A justificativa para esta diferenciação é que água é quando não é utilizada, o que não acontece com os recursos hídricos que são classificados como bens econômicos e por isso podem ser precificados. Sim, parece sem sentido, e é, já que a água, mesmo quando não captada para algum uso, regula a temperatura, mantém os ecossistemas (alguns estudiosos já falam em fluviofelicidade ou hidrofelicidade como resultado apenas de estarmos próximos aos rios e lagos). E assim, como afirma Siqueira (2005, p. p. 40), “a escassez geral ou abstrata surge como ideia determinante e geradora de um novo modelo global de gestão a ser adotado por todos os países em todas as situações.” Estes argumentos favorecem o entendimento sobre a água como algo a ser mercantilizado até mesmo onde existe em abundância como em países da Europa ou em estados do Sul do Brasil.
O medo de não poder usufruir deste líquido essencial pode nos colocar em genuflexão diante do Mercado da Água como um fiel diante de uma divindade que nos salvará da iminente catástrofe. O pânico se apossa de mentes que, distante de uma reflexão mais aprofundada, aceitam os remédios prescritos para a doença sem a devida atenção para as contraindicações. Mas o remédio somente remedia a situação, sem realmente curá-la. Para lidar com a escassez é preciso investigar se a sua causa é natural ou resultado das intervenções humanas e isso não interessa aos que querem irrigar as suas contas bancárias.
Há mudanças no Mercado da Água atualmente que devem nos deixar atentos. Se antes as privatizações se davam na forma do repasse total da estatal para o poder privado, isso já não interessa às transnacionais do setor, dado o quão complicado é o elemento natural água com a imprevisibilidade climática, seu transporte e tratamento, as questões políticas, culturais e até mesmo espirituais que a envolvem. Sendo assim, veremos cada vez mais a presença das transnacionais da água através do Capital Misto e das Parcerias Público-Privadas, as famosas PPPs, nas empresas públicas de saneamento. Estas permanecerão oficialmente estatais, mas serão administradas como uma empresa privada e não orientadas como prestadoras de serviço público, função para a qual foram criadas. Agregue-se a este fato que, não sendo oficialmente as donas das empresas, as transnacionais da água não serão responsabilizadas caso haja crises como a que foi vivenciada pelo estado de São Paulo nos últimos anos, embora possam continuar a impor o seu modelo de gerenciamento e lucrar com os repasses dos dividendos4. Este fato pode ser claramente entendido observando o caso da Sabesp, como é relatado por Schapiro e Marinho (2018, p. 1428) que afirmam: “No limite a Sabesp revelaria um caso de uma privatização funcional, isto é, uma colonização da empresa pelos interesses privados sem que tenha havido uma mudança estrutural de controle.”
Baseado nas premissas acima, devemos primeiro desconfiar de todas as notícias que divulgam uma guerra iminente pela água em todo o planeta. Em seguida, devemos nos perguntar se o discurso propagado de que somente a eficiência do setor privado será capaz de nos prevenir da Guerra da Água provocada por sua possível escassez no planeta é verdadeiro ou esconde os interesses para privatizá-la. Não esqueçamos de que o Brasil é a “Arábia Saudita da água” e possibilitar que as transnacionais controlem as nossas águas, é colocar a soberania do país em perigo sem a garantia de que as populações mais vulneráveis corram o risco de ter cada vez menos acesso a um direito humano inegociável.
Por Flávio José Rocha
O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas no Estado de Goiás (STIUEG) teve seu início no ano de 1949, com a criação da Associação dos Funcionários da CELG. O segundo passo importante dessa história foi dado com a extensão de base para a Associação dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas no Estado de Goiás...
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