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O Brasil à beira do apartheid hídrico

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02/03/2020

Elementos insólitos marcam agora a paisagem, nos canais de irrigação que desviam a água do Rio São Francisco para as grandes fazendas de fruticultura do Nordeste. Em Petrolina (PE), seguranças armados ao estilo Robocop, apoiados por drones, deslocam-se em motocicletas, vigiando a canaleta, para que a população não tenha acesso à água. Os moradores precisam arriscar-se, furtivos, para matar a sede. Em Cabrobó (PE), surgiu um enorme muro, diante do conduto da “transposição”.

Agricultores que estão a menos de cem metros da corrente já não tem acesso a ela, nem como dessedentar suas poucas cabeças de cabras. As cenas, que parecem brotar de uma ficção distópica, estão em algo hoje raro na mídia comercial brasileira: uma reportagem. O jornalista Patrick Camporez passou semanas viajando pelas regiões onde estão explodindo os conflitos pela água no país.

O Brasil dispõe de 12% de toda a água doce que há no mundo. O acesso à água, abundante, foi por séculos livre. Até há duas décadas, quase não havia conflitos. Este cenário está se transformando rapidamente, mostra Patrick. Nos últimos cinco anos, foram registrados 63 mil boletins de ocorrência policiais registrando confrontos. Surgiram 223 “zonas de tensão”. Os casos são muito diversos, mas o contexto é comum. O poder econômico – agronegócio, administração de hidrelétricas, indústrias, grileiros interessados em se apropriar de terras públicas – tenta, de múltiplas maneiras, restringir o acesso a rios e represas. O Estado quase sempre o apoia. Agricultores familiares e comunidades tradicionais – índios e quilombolas – são as grandes vítimas.

As mortes se multiplicam. Em Santarém, na confluência de dois dos maiores rios do mundo (Amazonas e Tapajós), o líder quilombola Haroldo de Silva Betcel teve uma grande chave de fenda fincada às costas pelo capataz de uma fazenda. A região virou polo sojeiro. Haroldo cometeu o “crime” de se rebelar contra os fazendeiros, que compraram terras, cercaram igarapés e bloquearam o acesso do quilombo Tiningu (existente desde 1868) à água. Em Colniza (MT), outra fronteira de expansão do “agro”, um agricultor foi morto, e nove feridos, a bala por jagunços de grandes proprietários, quando retiravam o líquido no Rio Traíra.

Os métodos chocam. Notórios desde os tempos da colônia por seu conhecimento sobre os labirintos aquáticos, os índios Mura, do Amazonas, estão atônitos com uma nova ameaça: os búfalos. Os proprietários rurais soltam os animais nos igarapés, para que levantem lodo do fundo dos leitos, tornem a água insalubre e devastem a vegetação rasteira das margens, alimento dos peixes de que dependem os Mura.

Dois retrocessos políticos de enorme gravidade ameaçam submeter 200 milhões de brasileiros ao tormento revelado por Patrik Camporez. A privatização da Eletrobras colocará em mãos privadas, se concretizada, não apenas a geração de energia, mas também as centenas de barragens que regulam e condicionam o fluxo de nossos rios. Controlados por empresas cujo objetivo é o lucro, as represas serão vistas não como um Comum, mas como um ativo a ser explorado da forma mais rentável possível. Em sua mensagem à reabertura do Congresso, este ano, Bolsonaro elencou a medida entre suas prioridades, no ano legislativo que começa.

Já a população urbana está diante do projeto que privatiza o abastecimento de água e os serviços de saneamento – hoje públicos em quase todo o país. Está no Senado, já tendo passado pela Câmara, texto neste sentido, também encaminhado pelo Palácio do Planalto. Entre diversos itens bizarros, um dispositivo obriga as prefeituras a oferecerem à iniciativa privada o “direito” de apresentar propostas para a compra dos serviços municipais de água e esgoto.

A proposta coloca o Brasil na contramão de uma tendência internacional. Um relatório do Transnational Institute revelou, em 2017, que em 180 cidades, de 35 países – da Bolívia à Alemanha haviam revertido a privatização de seu abastecimento. Entre outras razões estavam a piora nítida dos serviços e o aumento acentuado das tarifas – ambos ditados pela necessidade de gerar lucros para os acionistas. Vale lembrar que o Estado de S.Paulo apoia tanto a privatização da Eletrobras quanto a do abastecimento urbano.

Tanto pelo que já ocorreu, quanto pelo que ainda está em jogo, em tempos áridos, surge no Brasil mais uma pauta – para uma esquerda que esteja disposta a enxergar os dramas concretos da população e os horizontes pós-capitalistas. Trata-se de conceber e propor medidas concretas para que a água seja direito, e não mercadoria.

Inclui derrubar muros e desarmar milícias; desapropriar os proprietários de terra que restrinjam o acesso da população a cursos de água que passam por suas posses; assegurar que todos possam servir-se livremente dos rios, lagos e canais – na medida necessária para seu consumo, a manutenção de suas lavouras familiares e a dessedentação do gado.

Envolve, em especial, garantir o que nunca foi feito antes: um vastíssimo programa de obras públicas para despoluir os rios urbanos, enfrentar as crises hídricas que fustigam metrópoles como São Paulo e Rio, superar nosso imenso atraso em saneamento – especialmente nas periferias – e converter a água num Comum. Ele gerará, ao mesmo tempo, centenas de milhares de ocupações, de todo tipo. Será financiado com os recursos de uma Reforma Tributária e com a emissão de moeda pelo Estado – ou seja, com os mesmos métodos usados para salvar os bancos, em tempos de crise, mas agora com enorme ganho social.

Vivemos tempos de grandes ameaças, mas enormes possibilidades. Os programas de “reformas fracas” já não dialogam com uma sociedade angustiada. É preciso pensar o pós-capitalismo.

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