“A possibilidade de ter um avanço do saneamento exatamente nas áreas que hoje são mais rentáveis, nas áreas onde você já tem um índice elevado de atendimento, é muito mais provável do que a garantia de que o setor privado vá atuar onde precisa atuar, que é nas áreas mais pobres, nas periferias das cidades e nas rurais, onde efetivamente mora a população que tem menos condição de pagar. Por óbvio, a lógica do lucro vai dificultar o acesso das pessoas mais pobres aos serviços”, comenta Aparecido.
Na avaliação do especialista, também secretário executivo no Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), o setor privado diz que vai resolver o problema dos investimentos, mas, na verdade, vai buscar recursos na Caixa Econômica Federal e no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os fundos oriundos genuinamente das empresas serão pequenos, ele considera.O movimento de privatizações de empresas de saneamento já data dos anos 1990, explica Aparecido.O especialista cita o caso da empresa Águas de Manaus, na capital do estado do Amazonas, privatizada nos anos 2000. Um ranking divulgado este ano pelo Instituto Trata Brasil coloca o município como o terceiro pior entre as 100 maiores cidades brasileiras. Segundo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, a tarifa aumentou e o tratamento de esgoto cobre somente 10% das moradias. O Estado, então, voltou a colocar recursos para que não haja colapso no atendimento.
“Manaus é um bom exemplo de que é uma falácia essa ideia de que o setor privado é mais eficiente que o setor público. Você ainda tem 600 mil pessoas na capital sem água. O setor privado coleta apenas 30% dos esgotos e só 10% recebem algum tipo de tratamento”, argumenta. “O setor privado sempre esteve presente na atuação do saneamento, seja nas obras, na elaboração de projetos. O que eles querem agora é controlar a gestão das empresas, o setor comercial, de contratações, cuidar da gestão como um todo.”
Projeto não estimulará investimentos, afirma especialista
Engenheiro civil, ex-secretário de Saneamento do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, Abelardo de Oliveira Filho também criticou o projeto, em audiência pública realizada na Câmara, em 3 de setembro. Ele cita o estudo do Instituto Transnacional (TNI), que aponta a tendência mundial de reestatização de serviços públicos de fornecimento de água e esgoto.
Referenciado também pelo relator Organização das Nações Unidas (ONU), o brasileiro Leo Heller, o levantamento aponta que, nas últimas duas décadas, houve ao menos 180 casos de reestatização do fornecimento de água e esgoto em 35 países, como França, Alemanha, Argentina, Bolívia e Moçambique. O fracasso internacional da entrega do saneamento ao setor privado se deu principalmente por falhas das empresas em atingir metas de universalização, problemas com transparência e dificuldade de monitoramento do serviço pelo setor público.
“O projeto não vai resolver os problemas de saneamento básico no País, ao contrário, vai desestruturar completamente o setor, destruindo tudo o que foi conquistado nos últimos 15 anos”, afirma Oliveira Filho. “Destrói as empresas públicas estaduais de saneamento básico e institucionaliza o monopólio privado do setor na prestação dos serviços públicos. Não vai estimular os investimentos, ao contrário, levará à precarização na maior parte dos municípios. A expectativa de aportes elevadíssimos de recursos privados carece de sustentação em fatos e dados.”
Para deputado do PSOL, proposta é “mentirosa”
Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), a proposta na Câmara é “mentirosa”. O parlamentar é um dos 28 titulares que compõem a comissão especial. Braga afirma que um dos piores impactos do novo marco regulatório será o aumento nas contas de água. Ele cita o caso de sua cidade natal, Nova Friburgo, que teve a sua companhia de água privatizada e, segundo o parlamentar, resultou no aumento das tarifas. Ele diz que acredita nas condições de barrar o projeto, pela mobilização popular.
“As empresas privadas avaliam o bem água como uma mercadoria que precisa ser explorada. A partir dessa avaliação, elas visam maximizar seus lucros e não dar atendimento a regiões remotas onde investimentos maiores precisariam ser realizados”, diz. “A proposta dele [do relator Geninho Zuliani] é mentirosa, você não vai ter ampliação significativa do investimento em regiões remotas porque esse não vai ser interesse das empresas. Primeiro, porque elas não vão querer ampliar a realização de investimentos. Segundo, que ela não quer fazer em áreas remotas porque depois elas terão que dar manutenção ao investimento realizado.”
Procurada, a empresa Águas de Nova Friburgo afirma que o reajuste tarifário está previsto no contrato de concessão firmado em 2009. Segundo a companhia, “o reajuste é baseado em uma fórmula paramétrica, que reflete as variações dos principais insumos da concessionária, como a tarifa de energia elétrica, por exemplo, que subiu, em 2019, cerca de 10%”. A empresa afirma que, antigamente, a cidade não contava com coleta e tratamento de esgoto. Hoje, diz nota, 99% da população tem água tratada e 95%, esgoto tratado.
No entanto, em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) recebeu uma série de denúncias sobre irregularidades na coleta de esgoto pela empresa. De acordo com as denúncias, disse a Alerj, a companhia usaria a rede pluvial no lugar de uma rede específica. Segundo a Comissão de Defesa do Meio Ambiente (CDMA) da Casa, a utilização da rede pluvial é um grave descumprimento do contrato de concessão. A Alerj e a Câmara Municipal de Nova Friburgo foram questionadas sobre a resolução dos casos, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Relator: declaração de Braga é “irresponsável”
Ouvido por CartaCapital, o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), relator do projeto, classificou a avaliação de Glauber Braga como “precoce e irresponsável”.
“Eu não sei de onde que o deputado tirou essas informações, é muito precoce e irresponsável a declaração de que vai haver aumento. Porque, no fundo, as agências reguladoras funcionam para isso. A taxa de água e esgoto tem que ser justa e módica. Então, afirmar isso, nessa altura do campeonato, sem o relatório pronto, é, no mínimo, irresponsável”, diz Zuliani. “A situação que está, com 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto, talvez não preocupe a ele, mas preocupa muito a mim.”
Segundo o parlamentar, a classificação do sistema tarifário é um dos pontos mais controversos, pois há casas que não têm hidrômetro e, portanto, municípios que não têm como medir o consumo acabam aplicando taxas mínimas ou dispensando a cobrança. Ele pediu um levantamento a entidades para investigar esses casos. Zuliani argumenta que, para universalizar o saneamento básico, é preciso investir 600 bilhões de reais. A ideia é basear o projeto em três pilares: investimento, concorrência e regulação.
“Esse dinheiro todo que nós precisamos só pode vir do mercado financeiro, do setor privado, de financiamentos, isso é um fato. Sobre a concorrência, é ela que traz o melhor preço, a qualidade e a eficiência. E no caso da regulação, não existe bom contrato de concessão, nem de programa, nem de terceirização ou PPP, se não tiver uma agência reguladora que vai fiscalizar os contratos e tomar decisões sobre a questão tarifária.”
Fonte: CartaCapital